Para este Dia Mundial da Bicicleta, data criada pela Assembleia das Nações Unidas em 2018, selecionei algumas traduções e maneiras de nomear esse veículo substantivo e genial, mas acabei me desviando do assunto porque a vida culminou com a necessidade total da minha atenção para cuidados familiares — e é preciso saber para onde dirigir a energia.
E nesta manhã de sábado ensolarado e frio do outono paulistano, tomei uma decisão: destinarei menos esforço à cobertura das guerras pelo micro poder do setor ciclístico e vou usar este trabalho de propósito, que é o Jornal Bicicleta, para aprofundar temas verticais, horizontais e diagonais à mobilidade coletiva e sustentável em nível planetário. Vou ser mais COP e menos Câmara Temática, mais Planeta Terra e menos cidade de São Paulo.
E um ponto pacífico é que nunca abrirei mão da transparência e da ética que a profissão de jornalista exige, de buscar fatos mais do que opiniões. Com tal premissa, necessário dizer: a bicicleta não é livre de imperfeições e nunca será um transporte carbono zero como tentam pregar por aí. Isso é utopia. Até na caminhada deixamos nossa pegada, a não ser que vivamos isolados, como ainda vivem alguns povos originários, sem consumir nada no Shopee nem no supermercado, preocupados em ser apenas humanos na floresta.
Por tal viés, uma coisa que sempre me pega é o descarte dos pneus e câmaras das minhas bicicletas. Onde metê-los quando já não nos servem? Minha colega Patrícia Vilas, sublime artesã da Gaia Alforjes, os usa para criar bolsas, pochetes e outros órios para quem pedala. Mas ela é uma gota nesse oceano consumista no qual estamos nos afogando. Seria formidável se todas as bicicletarias do Brasil enviassem todos os pneus para programas de reciclagem, como é o Reciclanip, mas no corre-corre de ganhar a vida, é normal entender que haverá gente que vai descartá-los no lixo comum.
E não caiamos no mito de que a reciclagem vai salvar o mundo da hecatombe climática, pois não vai. Mesmo se 100% de todos os pneus produzidos na Terra fossem reciclados, ainda assim a pegada de carbono continuaria gigante, pois a mesma fábrica que faz produtos para bicicletas também fabrica para carros, motos, tratores, caminhões e demais veículos. Estão todos no mesmo balaio e juntos produzem impactos tão nocivos quanto os desmatamentos e as movimentações de terra usadas para buscar o ferro ou produzir o alumínio dos quadros — atividades bem problemáticas, haja vista as tragédias de Mariana e Brumadinho.
Temos aqui uma parceria mortal no processo de aquecimento global, e nenhum cicloativista, por mais verde, vegano ou sustentável que seja, estará livre do fato de fazer parte dessa roda da fortuna que está a fritar o mundo — pois pouco importa se ele ou ela participa consumindo um ou um milhão de galões de petróleo, um ou cem quilogramas de ferro.
E falar da reciclagem de materiais dentro do cicloativismo é um tabu, avalio, pois é tão frágil a linha de defesa da bicicleta como ferramenta de combate à emergência climática, já que menos de dez países a elegeram para isso em seus compromissos consequentes do Acordo de Paris. Alocar mais uma fraqueza ou ameaça nos quadrantes da análise SWOT/FOFA, que os engenheiros de cenários praticam para avaliar se algo é viável ou não, se mostra temerário — já que, aqui no Brasil, a bicicleta em geral não é vista por prefeitos como solução de transporte, ficando restrita ao lazer, ao esporte ou ao deslocamento de pessoas de baixa renda.
E assim, vivemos nós, ativistas da bicicleta, um dilema filosófico e existencial toda vez que formos trocar os pneus ou lavar a corrente cheia de graxa e lama com a água tratada da torneira, deixando tudo escorrer pelas sarjetas que deságuam em nossos rios e córregos.
“Bicho, melhor ficar quieto; se a gente tratar desse assunto abertamente em vídeos de rede social, só vamos dar mais argumento a quem é antibicicleta”, diria um lobista do setor ciclístico — pois, para ele, mais interessado em vender modelos elétricos, falar de poluição associada à bicicleta certamente culmina em mostrar que, nessa versão moderna, há os problemas decorrentes do descarte das baterias de chumbo e lítio.
Só que eu não sou lobista, e meu compromisso é com a realidade. Assim, neste dia importante para quem defende a bicicletinha movida apenas com a força humana, afirmo que, além de todos os benefícios que seu uso traz para a saúde da humanidade, arei a abordar nesta coluna não só as virtudes, mas também as vicissitudes. Se quero combater o lobby do mal, não posso agir como ele — não é mesmo?
Por fim, viva o Dia Mundial da Bicicleta: “vélo” em francês, “fahrrad” em alemão, “bicycle” em inglês, “zìxíngchē” em mandarim, “jitensha” em japonês, “darrāja” em árabe, “sāikil” em hindi, “mba’e rerekua” (que significa literalmente “coisa que corre”) no guarani da América do Sul, “baiskeli” no swahili africano, “kẹ̀kẹ́” no iorubá da Nigéria, “ka’a wāwae” (que significa literalmente “veículo de pés”) em havaiano, “paihikara” em maori da Nova Zelândia e “podílato” em grego.
