“Eu acho que tem muita gente que tem um sonho, todo mundo tem um sonho. Eu nasci aqui, me criei aqui, por que o meu sonho é ter energia, estrada […] vai facilitar o trabalho nosso, viver melhor, meu sonho” (Seu José Rodrigues Alencar, morador de Brejo das Meninas – Piauí. Projeto Conflitos sociais e desenvolvimento sustentável no Brasil Central, 2019).
A apropriação e controle de terras pelo capital financeiro impulsionou no Brasil a constante expansão do agronegócio para a produção de commodities, especulação imobiliária e financeirização da agricultura. Este ano, a despeito de 52% das famílias brasileiras apresentarem algum grau de insegurança alimentar e a fome estar presente nos corpos de 19 milhões de pessoas , o agronegócio registrou recorde na exportação em setembro: US$ 10,10 bilhões, 21% a mais que em setembro de 2020. Este é o caso da idealização do agronegócio para a exploração da nova fronteira agrícola, o chamado MATOPIBA (acrônimo para uma microrregião que liga partes dos estados de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia).
Apesar da delimitação formal ter sido realizada somente em 2015 pelo Grupo de Inteligência Territorial Estratégica (GITE) e revogada em 2020, lá em 2013 a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA) começou a delimitar a região do MATOPIBA e trazer para as mídias a promessa da nova fronteira agrícola brasileira. A área de implementação do Plano MATOPIBA corresponde a cerca de 73 milhões de hectares distribuídos em 31 microrregiões e 337 municípios.
Recentemente foi lançado o Observatório MATOPIBA, reunindo uma rede de pesquisadores e diversos colaboradores de diversos lugares do Brasil, para monitorar uma das regiões mais conflituosas do país. No Observatório MATOPIBA, pesquisadores publicaram o Levantamento de legislação ambiental e fundiária nos Estado do MATOPIBA, que reúnem informações sobre a situação fundiária dos 4 estados. O Observatório se debruça agora em avaliar a pobreza e a desigualdade derivadas da expansão da fronteira agrícola no Matopiba, entre outros pontos-chave, sobre os conflitos e o desenvolvimento da região.
A criação da região do MATOPIBA está diretamente relacionada ao debate trazido pelo livro, recentemente lançado no Brasil, pelo Observatório MATOPIBA sobre Extrativismo Agrário na América Latina. O conceito de ‘extrativismo agrário’, trazido pelo livro organizado por McKAY, ALONSO-FRADEJAS e EZQUERRO-CAÑETE (2021, é distinto da noção de ‘industrialização da agricultura’, sendo que, mais do que extrair recursos naturais, o extrativismo agrário envolve um amplo complexo de relações sociais e fluxos de conhecimento, ideias, energia e materiais, possibilitando a expansão das fronteiras das commodities. O Lançamento está disponível no canal do YouTube do Observatório MATOPIBA em: (https://www.youtube.com/watch?v=nzM819kRE_E&t=1769s).
O debate sobre extrativismo agrário desmente o forte discurso de preservação ambiental praticado pelas corporações do agronegócio no contexto do capitalismo verde. Todavia, exploram o deslocamento da espoliação produzida a partir da exploração do trabalho na indústria para à exploração da natureza no contexto do capital agrário extrativista. A chave de análise do extrativismo agrário constitui-se numa ferramenta analítica fundamental para desconstruir o discurso de desenvolvimento trazido pelo agronegócio.
Para quem prefere ouvir, sentir e entender melhor as vozes do MATOPIBA, a Rede Social de Justiça e Direitos Humanos lança quinzenalmente conteúdos no PODCAST AQUI É MEU LUGAR com panoramas específicos de comunidades camponesas, indígenas, ribeirinhas e quilombolas e de temas mais gerais, falas dos povos do campo e atualizações sobre suas lutas, cotidiano e vivências dos povos do cerrado.
A criação do MATOPIBA, em 2015, é a consolidação de um movimento que vem tomando proporções maiores, desde o início dos anos 2000, através das empresas de capital financeiro em busca de controle de terras de fácil aquisição. Frederico e Almeida (2019) apontam que o capital financeiro controla mais de 1,5 milhão de hectares na região do MATOPIBA, sendo o principal agente da expansão do capital na região, especialmente os fundos de investimentos. Neste contexto, destaca-se o Piauí como principal alvo, mas que isso não ocorreu sem a intensificação da conflitualidade.
"Quem são os verdadeiros controladores destas empresas? Quais as suas intencionalidades? Estratégias de atuação e acumulação? Estas são questões que inquietam os pesquisadores preocupados em analisar em profundidade o controle de terras na região" (FERNANDES; FREDERICO; PEREIRA, 2019, p.181).
MATOPIBA é uma área de controle e de estrangeirização do território
Nesta região estão atuando empresas transnacionais, fundos de investimento e fundos de pensão de países como Estados Unidos, França, Suíça, Alemanha e Japão, além das empresas nacionais. Neste sentido, como expresso acima, o cerrado piauiense é o principal alvo do capital financeiro internacional, com o objetivo de gerar lucros para os investidores, pela produção de monoculturas para fins de exportação (soja, milho, algodão) ou pela especulação da terra para vendas futuras a preços superiores.
Segundo os dados do relatório anual da Comissão Pastoral da Terra, Conflitos no Campo Brasil 2019, a maioria dos conflitos por terra que estão localizados na delimitação MATOPIBA, estão nos municípios de Baixa Grande do Ribeiro, Bom Jesus, Gilbués e Santa Filomena, municípios com intensa produção de soja e outros grãos (T, 2020). A maioria das famílias envolvidas são de posseiros, habitantes destas terras desde tempos remotos, como a Comunidade Melancias (Gilbués) e a Comunidade Brejo das Meninas (Santa Filomena), que já estão há mais de 3 gerações nos territórios das comunidades. Em 2020, a Comissão Pastoral da Terra inseriu o Maranhão na liderança dos conflitos registrados com 203 ocorrências, além de destacar o aumento de 25% nos conflitos na região do MATOPIBA entre 2019 e 2020.
Abaixo, o documentário sobre a comunidade Melancias, situada no sul do Piauí, feito pela T, que conta a história dos moradores e das moradoras que sofrem com a contaminação da água e de alimentos, o surgimento de novas pragas e o aumento da violência no campo.
A Missão de Investigação no Brasil, realizada em 2017 pela FIAN International, revelou os impactos sociais e ambientais consequentes do desenvolvimento do agronegócio em comunidades do Sul do Piauí. As comunidades pesquisadas pela missão mostravam as graves consequências do desmatamento, como por exemplo, a perda da biodiversidade, dos recursos naturais, contaminação do solo, perda de água e do gado. Por fim, o relatório denuncia o aumento da violência contra líderes comunitários, disputa pelo o à água, rupturas comunitárias e fome geradas pela constante perda de terras.
A Comunidade Melancias, situada no município de Gilbués, vem sofrendo diversos ataques que demonstram bem as conflitualidades presentes na criação do MATOPIBA e as consequências do cerco pelas fazendas de soja:
O entorno de Melancias, nós estamos cercados pelo agronegócio, a soja. Nós não tinha medo de ar em lugar nenhum com medo de seu fulano, isso pra nós é riqueza. Agora hoje não vejo riqueza porque hoje nós anda com medo, nós temos ameaças, nós somos ameaçados de morte por pedir a preservação de nosso meio ambiente (Seu Juarez Celestino, morador da Comunidade Melancias. Trecho extraído do documentário Melancias, 2019).
Seu Juarez Celestino. / Documentário Melancias, T Piauí
Já a comunidade Brejo das Meninas, localizada no município de Santa Filomena, município vizinho a Gilbués, comunidade que se auto reconhece como ribeirinha, vivendo há mais de um século às margens do rio Riozinho, denuncia os conflitos e as dificuldades consequentes das disputas territoriais, como as ameaças de morte, desterritorialização e expulsões:
A grilagem de terra ameaça de pessoas que se opõe, temos vítimas aqui, eu também fui vítima de ameaças de morte; estão expulsando os moradores e suas famílias das terras, (…) houve casos em que o posseiro foi tirado de sua propriedade, amarrado, jogado na carroceria de uma camionete e foi tirado desta forma de sua propriedade (Markisan, Sindicato dos Trabalhadores\as Rurais de Santa Filomena. Projeto Conflitos sociais e desenvolvimento sustentável no Brasil Central, 2019).
Os perigos de viver no MATOPIBA
A escalada dos conflitos no campo, situados nessa localização, revela não só a extrema vulnerabilidade e invisibilização dos povos locais, como também os perigos de viver num dos territórios com crescentes índices de queimadas e desmatamentos dos últimos meses. É o que revelam os estudos feitos pelo INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), mostrando que Piauí e Bahia apresentaram aumento dos focos de queimadas e desmatamentos. No Piauí, os focos de queimadas avançam já pela caatinga, resultado da intensa expansão da produção de soja no estado.
Mapa extraído do INFOQUEIMA – Boletim Técnico Mensal de Monitoramento de Focos de Fogo Ativo. VOLUME 06 – Nº 09 – SETEMBRO/2021 / INPE
Ainda de acordo com o Boletim INFOQUEIMA, produzido pelo INPE, a Bahia registrou, em setembro de 2021, aumento de 238% em focos de fogo ativo em relação a setembro de 2020. O Piauí registrou aumento de 84% para a mesma época comparativa. Somando os 4 estados que formam o MATOPIBA, o INPE qualificou que entre 2019 e 2021, 30,7% dos focos de queimadas eram “Desmatamento Consolidado” e 21,4% como “Desmatamento Recente”, os outros 47,9% que correspondem à 42.470 focos de queimadas são de Vegetação Primária (INPE, 2021).
A Rede Social de Justiça e Direitos Humanos (2018) revelou as consequências da territorialização de empresas como a SLC Agrícola, Radar e Insolo na região Sul do Piauí. Com imagens de satélite entre os anos 2000, 2008 e 2016, os estudos apontam o crescente desmatamento decorrente das plantações de soja nas fazendas da região. Como consequência do desmatamento, houve destruição de nascentes e seca de rios, as mudanças no regime pluviométrico provocaram seca e afetaram as comunidades locais que dependiam da água para sobrevivência.
Quando a vida no MATOPIBA se torna ameaçada, percebe-se que os pedidos de socorro ecoam já há muitos anos.
A comunidade Brejo das Meninas, localizada no município de Santa Filomena, município vizinho a Gilbués, comunidade que se auto reconhece como ribeirinha, vivendo há mais de um século às margens do rio Riozinho, sobrevive diante de conflitos e as dificuldades consequentes das disputas territoriais, como as ameaças de morte, desterritorialização e expulsões.
Para além dos conflitos e violências explícitas das quais as comunidades precisam resistir para sobreviver e para ter como se reproduzir, também existem as violências silenciosas, essas que dificultam por outros meios a vida, como o desmatamento das matas nativas, pragas, o uso de agrotóxicos e envenenamento de rios e nascentes, o isolamento, exclusão, falta de assistência, de infraestrutura, de educação e saúde ou seja, o abandono estatal que também tem impacto no aumento da pobreza e da fome no campo. O chamado MATOPIBA, termo criado pelo agronegócio, se territorializa onde a maioria das famílias estão em situação de pobreza ou pobreza extrema, como é por exemplo, o caso do Piauí: do total de estabelecimentos piauienses situados no MATOPIBA, 80% são muito pobres, presentes em todos os 337 municípios, 14% são pobres e 1.020 (0,42%) são classe rica evidenciando a enorme concentração na geração da renda, de acordo com o relatório produzido pelo GITE (2014).
A resistência neste ponto é a sobrevivência do modo de vida camponês à despeito das crises que enfrentam os camponeses, tanto na produção quanto na reprodução da vida. É com resiliência e flexibilidade, com capacidade de adaptação às adversidades e às crises que se impõem em suas vivências que o campesinato, milenarmente, tem resistido a diferentes sociedades, regimes políticos e econômicos. Sobretudo, a resistência camponesa está na irmandade e ajuda mútua que se cria entre muitos destes povos do campo, pois, resistir no coletivo é encontrar uma multiplicidade de soluções. É assim que define Teodor Shanin em Lições Camponesas (2008), a natureza da economia familiar.
FONTES
BRASIL. Decreto no. 8.447, de 6 de maio de 2015. Dispõe sobre o Plano de Desenvolvimento Agropecuário do Matopiba – PDA Matopiba. (Revogado pelo Decreto no. 10.473/2020).
Conflitos no Campo Brasil 2019. Comissão Pastoral da Terra. Centro de Documentação Dom Tomás Balduino. T Nacional, Goiânia, abril de 2020.
Comunidade Brejo das Meninas: luta e resistência pela posse da terra no cerrado piauiense. Projeto conflitos sociais e desenvolvimento sustentável no brasil central. Fascículo n° 12. Abril, 2019.
FERNANDES, Bernardo Mançano. FREDERICO, Samuel. PEREIRA, Lorena Izá. Acumulação pela renda da terra e disputas territoriais na fronteira agrícola brasileira. Rev. NERA. Presidente Prudente v. 22, n. 47, pp. 173-201 Dossiê – 2019.
FREDERICO, Samuel. ALMEIDA, Marina Castro de. Capital financeiro, land grabbing e a multiescalaridade na grilagem de terra na região do MATOPIBA. Rev. NERA. Presidente Prudente. v. 22, n. 47, pp. 123-147. Dossiê – 2019. ISSN: 1806-6755.
GITE – Grupo de Inteligência Territorial Estratégica. Desenvolvimento Territorial Estratégico para Região do MATOPIBA – Parceria INCRA e EMBRAPA (MDA e MAPA). EMBRAPA. 2015. Disponível em: <https://www.embrapa.br/gite/projetos/matopiba/index.html>.
Matopiba: Delimitação, Caracterização, Desafios e Oportunidades para o Desenvolvimento – Piauí. Coordenador: Evaristo de Miranda. GITE, 2014. Disponível em: < https://www.embrapa.br/gite/projetos/matopiba/150514_MATOPIBA_PI.pdf>.
MCKAY, Ben; ALONSO-FRADEJAS, Alberto e EZQUERRO-CAÑETE, Arturo. Eds. (2021), Agrarian Extractivism in Latin America. Abingdon, UK: Routledge.
MELANCIAS. Direção Geral: Mariana Campos e Natalie Hornos. Direção de Fotografia e Montagem: Mariana Campos. Produção: Descoloniza!. Realização: Comissão Pastoral da Terra (T). Apoio: Fundação Rosa Luxemburgo. 2019. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=43gkTmrSgxU&t=13s>. o em: agosto, 2020.
Os Custos Ambientais e Humanos do Negócio de Terras: O caso do MATOPIBA, Brasil. FIAN International, Rede Social de Justiça e Direitos Humanos e Comissão Pastoral da Terra (T). Junho de 2018.
Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. Imobiliárias agrícolas transnacionais e a especulação com terras na região do MATOPIBA. Editora: Outras Expressões, 2018.
SHANIN, Teodor. Lições camponesas. In: Campesinato e Territórios em Disputa. (org) Eliane Tomiasi Paulino e João Edmilson Fabrini. 1.ª edição. Editora Expressão Popular, São Paulo, 2008.
*Agradeço e dedico à Clifford Welch, uma alma de luz e de luta que me ajuda na construção desta pesquisa e que me ensina sempre sobre empatia e humanidade na escrita, na pesquisa e na vida.
**Mestranda em Desenvolvimento Territorial na América Latina e Caribe (IPPRI/UNESP).
***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.