O projeto de lei que propõe uma ampla reforma do Código Civil Brasileiro (PL 4/2025), em tramitação no Senado, pode gerar uma “incerteza jurídica” capaz de impactar a vida cotidiana da população, alerta a professora e diretora do Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-Rio), Caitlin Sampaio Mulholland. Em entrevista ao Conexão BdF, da Rádio Brasil de Fato, ela classificou a proposta, que prevê mais de mil alterações e acréscimo de cerca de 200 dispositivos, como um “retrocesso”.
“Estamos diante de retrocessos porque estamos saindo do campo da certeza para o campo da dúvida, da incerteza”, classifica a professora. Ela explica que o Código Civil representa o direito dos comuns, que rege contratos, família, herança e propriedade. Modificada, “a reforma mexe com essas estruturas já consolidadas na sociedade, trazendo possibilidade de interpretação que pode retirar a certeza jurídica que temos hoje”, opina.
Na prática, o projeto “joga no colo do judiciário a responsabilidade pela interpretação de uma norma que tem conteúdos absolutamente abertos, que podem ser interpretados subjetivamente, da forma como o julgador achar conveniente”, sugere, ressaltando que os juízes já estão sobrecarregados no modelo atual. Se o projeto for aprovado, ela prevê “muita indecisão nos tribunais e interpretações aleatórias em temas que afetam toda a sociedade”.
Além disso, a professora destaca que as mudanças no Código Civil impactarão outras áreas jurídicas, como direito tributário, ambiental e istrativo, o que torna o projeto ainda mais complexo e delicado. “Por ser uma lei ordinária, uma lei geral federal, ela acaba impactando toda uma área para fora do direito privado”, esclarece.
A diretora defende que o projeto deveria ser engavetado para que uma reforma séria e ampla seja debatida com a participação da sociedade civil, advogados e acadêmicos. “Hoje estamos aqui na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) debatendo o texto, e a maioria dos professores considera que ele precisa ser descartado por completo ou precisa de uma reforma absolutamente”, conclui.
‘Não há situação social que exija modificação legislativa’
A professora critica a ausência de uma consulta popular ampla no processo legislativo. “O Código Civil de 2002 é fruto de um trabalho legislativo ativo de mais de 30 anos. […] O que acontece nesse projeto é uma urgência indevida porque não há nenhuma situação social que exija uma premente modificação legislativa”, protesta. “A sociedade civil não foi ouvida da forma necessária. […], então a lei não vai representar os seus interesses.”
Caitlin Mulholland destaca também a falta de diálogo entre os grupos de juristas responsáveis por diferentes partes do projeto, o que gerou conflitos internos no texto, como no caso da regulamentação da herança digital, que, na sua visão, deveria estar no livro de sucessões e não no de direito digital.
Para Mulholland, “estamos diante de uma reforma ou da redação de um novo Código Civil, dada a enormidade de modificações que pretendem ser trazidas”. Sobre a ampliação do conceito de família prevista no projeto, que reconhece famílias monoparentais e afetivas, por exemplo, ela diz que “essas realidades sociais já estavam sendo reconhecidas pelos tribunais”, e que a nova redação apenas “corrobora uma mudança social já em andamento”.
Em relação à responsabilidade pelas publicações nas redes sociais, o projeto atribui aos provedores e usuários independentemente da análise da culpa, o que, segundo a professora, representa um retrocesso e pode entrar em conflito com decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o Marco Civil da Internet e projetos como o chamado ‘PL das Fake News’, que trata da transparência das redes.
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