O desmatamento no Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga, maior quilombo em extensão territorial do Brasil, volta a causar medo e tensão entre as comunidades quilombolas. Seis anos após o último episódio, a comunidade Kalunga foi novamente surpreendida com novos desmatamentos em seu território, localizado na cidade de Cavalcante, na Chapada dos Veadeiros (GO).
O caso envolve a Fazenda Alagoas, de propriedade do empreendimento Apoena Agropecuária e Comércio Ltda, situada nas proximidades do Complexo do Prata. O imóvel se encontra dentro da área quilombola da comunidade Engenho II. A Associação Quilombo Kalunga (AQK) formalizou uma denúncia ao Ministério Público Federal (MPF), solicitando investigação sobre a legalidade da licença ambiental autorizada pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad).
Além disso, a ação foi feita sem consulta prévia a população local, garantida pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que prevê que comunidades tradicionais sejam consultadas de forma livre, prévia e informada antes de qualquer medida istrativa ou legislativa que possa impactar seus modos de vida.
O novo desmatamento foi flagrado por um sobrevoo do Ibama, no início de maio, via programa Previ-Fogo, e comunicado à Associação Quilombo Kalunga (AQK). A vegetação nativa, que estava em processo de regeneração natural desde 2019, após ações de desmatamento pela mesma fazenda na época, desta vez foi removida com o uso de tratores e gradeamento, supostamente para preparação do solo para o plantio de capim. A região afetada fica a 400 metros das nascentes do Rio Prata, uma das principais fontes de abastecimento hídrico das comunidades Kalunga.
“A retirada da vegetação pode secar as nascentes e há também o risco de contaminação das águas por agrotóxicos. As famílias vivem na beira dos rios, produzimos o nosso alimento, criamos os nossos animais na área. Isso ameaça diretamente nossa segurança alimentar e o nosso modo de vida”, afirma Damião Moreira dos Santos, quilombola e assessor da associação.

Território Kalunga
Apesar do reconhecimento oficial do território Kalunga desde 1996 e da criação do Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga, com aproximadamente 261 mil hectares, até maio de 2024 apenas 25.915 hectares haviam sido oficialmente titulados, o que representa menos de 10% do total.
Em 20 de novembro de 2009, o governo federal publicou o Decreto nº 6.992, declarando de interesse social, para fins de desapropriação, os imóveis rurais localizados nos municípios de Cavalcante, Monte Alegre de Goiás e Teresina de Goiás — área que abrange o território tradicionalmente ocupado pela comunidade Kalunga. O decreto teve como objetivo viabilizar a titulação coletiva do território, reconhecendo o direito à terra garantido pelo artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal. Mais de 15 anos depois, o processo de regularização fundiária segue incompleto.
Esse cenário mantém cerca de 8 mil quilombolas em situação de vulnerabilidade, expostos à grilagem de terras, desmatamentos e conflitos fundiários, mesmo após décadas de luta por seus direitos territoriais.
Dados do MapBiomas apontam que as áreas de floresta no território Kalunga também vêm diminuindo: em 1985, a cobertura vegetal era de 85,94%; em 2023, caiu para 78,41%.

Histórico de infrações e omissões
O imóvel do Apoena Agropecuária e Comércio Ltda já havia sido embargado em 2019 pela Semad, após o desmatamento ilegal de 520 hectares com uso de correntões — técnica comum no agronegócio que utiliza dois tratores puxando uma grande corrente para derrubar rapidamente a vegetação nativa.
Na ocasião, a empresa firmou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com a Semad e a Associação, com intermediação do MPF e do Ministério Público de Goiás (MPGO). O acordo previa pagamento de indenizações de R$ 200 mil à associação Kalunga e R$ 10 mil à Semad, além da recomposição ambiental de 1.200 hectares na Fazenda Alagoas.
Apesar do histórico, em fevereiro deste ano, a Semad emitiu uma nova Declaração Ambiental do Imóvel (DAI), desembargando a área e dispensando novo licenciamento ambiental. A medida foi tomada sem realização de consulta prévia, livre e informada à comunidade Kalunga.
A advogada de defesa da AQK, Andrea Farol, critica a ação da Semad e espera explicações da secretaria. “A Semad não pode tomar nenhuma decisão, fazer nenhum ato istrativo sem consulta prévia à comunidade. O que queremos entender é por que a área foi desembargada e como a declaração ambiental foi concedida sem essa consulta. Estamos aguardando a resposta da Semad”, afirma Farol.
A comunidade Kalunga aguarda respostas dos órgãos competentes sobre a legalidade das autorizações concedidas, bem como medidas para garantir o cumprimento dos direitos territoriais e ambientais do povo Kalunga.
Desapropriação pendente
“A preocupação da comunidade é que, quando as terras forem finalmente desapropriadas, já não exista mais vegetação nativa. Queremos garantir que nossas águas e nosso modo de vida sejam preservados”, reforça Damião Santos.
“É obrigação do Incra ele manifestar interesse e não permitir esse tipo de ação ocorra e atuar junto aos órgãos licenciadores”, complementa a advogada Simone.
Em resposta ao Brasil de Fato DF, a Superintendência do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) no Distrito Federal e Entorno informou que a Fazenda Alagoas está formalmente incluída em um processo de desapropriação e que já foram realizados os procedimentos iniciais, incluindo o georreferenciamento da área.
No entanto, como a política de regularização fundiária quilombola enfrentou, em anos anteriores, um período de estagnação, houve impacto na continuidade de diversos processos, incluindo o da Fazenda Alagoas. A retomada da referida política pela gestão atual está permitindo prosseguir com os trabalhos. O próximo o será elaborar o laudo de vistoria e avaliação.
O órgão ainda informa que está sendo produzido um relatório detalhado com informações sobre os imóveis já desapropriados e aqueles que ainda aguardam o pagamento das indenizações.
Os advogados da Fazenda Alagoas informaram ao Brasil de Fato DF que todas as informações e documentos foram enviados ao MPF e que não existe “nada de irregular” na propriedade. “Pelo contrário, ela possui mais da metade da área totalmente preservada”, afirmou a defesa.
O BdF também entrou em contato com a Semad e o MPF para esclarecer pontos sobre o caso. Foram solicitadas informações sobre a legalidade do novo desmatamento, o andamento de investigações, a necessidade de consulta prévia à comunidade Kalunga e os critérios para emissão de licenças ambientais. Até o fechamento desta reportagem, nenhuma das instituições havia se manifestado. O espaço segue aberto para posicionamentos.