Existe uma ironia quase shakespeariana no destino. Luis Fernando Verissimo que ou a vida domesticando palavras, que as transformou em risos e reflexões, que fez da linguagem sua ferramenta mais afiada para dissecar a humanidade, agora vê essas mesmas palavras escaparem feito pássaros assustados. “Ironicamente quem sempre lidou com as palavras começou a apanhar delas”, disse ao Brasil de Fato, Lúcia, sua companheira de mais de 60 anos, com a delicadeza de quem conhece a dor por dentro.
Mas talvez não seja ironia. Talvez seja apenas o último ensinamento do mestre.
Aprendi com Verissimo que o humor não é apenas o tempero da vida: é sua essência mais pura. Não o humor escrachado, grosseiro, que machuca e divide, mas aquele humor inteligente que nos une na condição absurda de sermos humanos. Suas crônicas eram aulas disfarçadas de entretenimento, onde cada piada carregava uma lição sobre nós mesmos. No Analista de Bagé, a contradição entre a sofisticação freudiana e a grossura caricatural não era apenas engraçada: era reveladora de nossas próprias contradições internas.
Foi ele quem me ensinou que a crônica não precisa ser grande para ser profunda. Em A Mulher do Vizinho, um diálogo aparentemente banal entre um casal desvenda camadas inteiras de preconceito e maledicência que habitam nosso cotidiano. A genialidade estava na simplicidade, na capacidade de encontrar o universal no particular, o eterno no efêmero.
Verissimo me mostrou que a ética não se prega. Pratica-se na escolha de cada palavra. Durante décadas, usou sua popularidade não para inflar o ego, mas para alfinetar com elegância os poderosos e defender com coragem os esquecidos. Seus textos tinham posição sem ser panfletários, tinham indignação sem perder a classe. A Velhinha de Taubaté, definida como “a única pessoa que ainda acredita no governo”, não era apenas uma piada, era um retrato melancólico de nossa inocência perdida.
E que coerência a de LFV. Em um mundo onde tantos intelectuais vendem a alma ao primeiro lance que aparecer, Verissimo manteve-se fiel a seus princípios por toda a vida. Nunca se curvou ao poder, nunca traiu suas convicções, nunca perdeu a ternura.
Verissimo nos deixa um legado que vai muito além dos mais de 80 livros publicados e dos 5 milhões de exemplares vendidos. Ele nos deixa um modelo de como ser escritor sem ser pedante, como ser popular sem ser vulgar, como ser crítico sem ser amargo. Ensina-nos que o verdadeiro humorista não é aquele que faz rir por rir, mas aquele que usa o riso como ponte para a compreensão e a compaixão.
Agora, quando as palavras lhe fogem, Verissimo nos dá sua última lição: que o silêncio também pode ser eloquente, que a grandeza de um homem não se mede apenas pelo que ele diz, mas pelo que ele é. E Luis Fernando Verissimo é, antes de tudo, um homem de bem.
Obrigado, mestre, por nos ensinar que escrever é um ato de amor ao mundo e às pessoas que nele habitam. Suas palavras podem estar fugindo, mas seus ensinamentos ficam para sempre, ecoando em cada cronista que aprende a ver a vida com seus olhos generosos e inteligentes.
No final, como ele mesmo disse um dia: “é o tempo que nos controla”. Mas alguns homens conseguem controlar a eternidade através de suas obras. E nisso, Luis Fernando Verissimo é imortal.
* Carlos Castelo é cronista, escrevinhador, colunista do Brasil de Fato RS e sócio-fundador do grupo de humor Língua de Trapo.
** Este é um artigo de opinião e não representa necessariamente a linha editorial do Brasil do Fato.