O PL 2159/2021, que avança no Congresso sob os aplausos do agronegócio e da bancada ruralista, é a materialização de um pesadelo que nós, povos originários, já vivemos há mais de 500 anos: a transformação dos nossos corpos, das nossas terras e da nossa história em mercadoria descartável.
Esse projeto cria a Licença por Adesão e Compromisso (LAC), um mecanismo perverso que permite ao próprio empreendedor se autolicenciar com um simples formulário online. Isso significa que obras de médio porte, como barragens de mineração e pequenas hidrelétricas, poderão avançar sem os estudos de impacto ambiental detalhados que conhecemos como EIA-RIMA. Tragédias como Mariana e Brumadinho, que deixaram marcas profundas em nossos rios e em nossa memória, não seriam evitadas – seriam facilitadas.
Mas a crueldade desse PL vai além. Ele simplesmente decide que 259 terras indígenas não homologadas não existem para fins de licenciamento. Como se nossos territórios ancestrais, onde vivemos e resistimos há gerações, só assem a valer quando o Estado finalmente reconhece nossos direitos.
O mesmo acontece com 80% dos quilombos que ainda lutam por titulação. E para completar o ataque, reduzem a área de proteção ao redor dos nossos territórios de 40 km para apenas 15 km na Amazônia – uma medida que na prática é um convite para mais invasões, mais desmatamento e mais violência contra nossos povos.
Os números são aterradores. Só na Amazônia, esse PL pode levar ao desmatamento imediato de quase 20 milhões de hectares, uma área equivalente ao estado do Paraná. São 26.231 milhões de toneladas de carbono que seriam liberadas na atmosfera, alimentando a crise climática que já castiga principalmente os mais pobres. E tudo isso enquanto 1.187 unidades de conservação ficam abandonadas à própria sorte, sem qualquer proteção efetiva.
O mais revoltante é ver como esse projeto foi costurado para beneficiar quem já lucra com a destruição. Os órgãos ambientais perdem poder de veto, os impactos indiretos viram “problema do Estado”, e o agronegócio ganha e livre para desmatar sem licença. Enquanto isso, os verdadeiros responsáveis pela preservação – indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais – são tratados como obstáculos ao “progresso”.
Mas nós não somos obstáculos. Somos a solução. A ciência já provou que onde há territórios indígenas há floresta em pé. Que nossos modos de vida são a melhor barreira contra o colapso climático. E é por isso que não vamos nos calar.
O PL 2159/2021 não é sobre esquerda ou direita – é sobre escolher entre vida ou lucro fácil
Estamos preparando ações no Supremo Tribunal Federal (STF) para questionar a constitucionalidade desse projeto de morte. Estamos organizando grandes mobilizações em Brasília e em todos os territórios ameaçados. E estamos cobrando do presidente Lula uma posição firme: ou ele veta integralmente esse PL, ou será cúmplice do ponto de não retorno da Amazônia, que segundo o cientista Carlos Nobre está mais próximo do que nunca.
Este não é um chamado apenas aos povos indígenas e tradicionais. É um alerta para todos os brasileiros que ainda acreditam num futuro com água limpa, ar puro e clima estável. O PL 2159/2021 não é sobre esquerda ou direita – é sobre escolher entre vida ou lucro fácil. Entre honrar nossa história ou repetir os erros que nos trouxeram até essa crise.
Como filha da terra Xakriabá, eleita para defender os povos originários e a vida, digo com todas as letras: resistiremos. Quando o Congresso aprova um projeto que entrega nossos territórios, ele está assinando a sentença de morte não só dos povos indígenas, mas do futuro de todas as gerações que ainda estão por vir.