Referência do afrofuturismo no Brasil, o escritor Alê Santos acaba de relançar Rastros de Resistência e Literatura Afrofuturista, obra premiada que apresenta personagens históricos negros muitas vezes apagados pelos registros oficiais. A nova edição, revisada e ampliada, adiciona histórias inéditas de duas figuras: João Cândido, o Almirante Negro, líder da Revolta da Chibata (1910), e Beijamin, primeiro palhaço negro do país. “São histórias potentes que precisavam estar ali”, afirma o autor, que também é conhecido por viralizar nas redes com fios no X que resgatam trajetórias de resistência.
Finalista do Prêmio Tamoios e parte do Clube de Leitura da Organização das Nações Unidas (ONU), o livro tem dialogado com escolas, bibliotecas e até com o hip-hop brasileiro, sendo citado por nomes como Emicida, Coruja BC1 e Planet Hemp. Para Santos, esse cruzamento entre música, literatura e periferia fortalece a luta antirracista e amplia o alcance da história negra no país. “O rap abre portas e a literatura acompanha, aprofunda.”
Em entrevista ao Conexão BdF, da Rádio Brasil de Fato, o escritor também fala sobre os desafios da pesquisa histórica, a potência da ficção científica como ferramenta de transformação social e a importância de um afrofuturismo com identidade própria no Brasil. “A ficção científica nos permite discutir temas que já estão no nosso cotidiano de forma ível”, defende. O seu trabalho pode ser acompanhado no X e no Instagram, ambos @savagefiction.
Confira a entrevista na íntegra:
Você foi citado pela Science Fiction Research Association como o autor afrofuturista mais popular da nova geração do Brasil. O que é o afrofuturismo?
O afrofuturismo é um movimento estético, cultural e até político, que coloca as narrativas negras dentro do contexto da tecnocultura, usando a estética da ficção científica, da ficção especulativa, seja na literatura, no cinema, na música, em todas as expressões artísticas. Ele ficou muito famoso com o filme Pantera Negra, lá nos Estados Unidos, mas aqui no Brasil ele já vem ganhando recortes especiais: na Amazônia, nas periferias urbanas, nas questões que envolvem as tecnologias brasileiras e as nossas realidades. É um movimento em plena expansão, muito vivo, sendo definido por artistas brasileiros e latino-americanos neste exato momento.
Você acredita que a ficção científica e o afrofuturismo podem ser ferramentas para a transformação social? De que forma suas histórias buscam provocar esse efeito nos leitores? E como você vê a importância de construir um afrofuturismo com identidade própria no Brasil?
A ficção sempre teve o poder de fazer com que as pessoas enxerguem realidades difíceis ou tenham conversas delicadas de forma mais lúdica. A ficção científica elabora alegorias que conectam o leitor de maneira profunda e, muitas vezes, despretensiosa. A série Eternauta, da Argentina, por exemplo, fala sobre a ditadura usando alienígenas, neve tóxica, distopias ambientais… Ela traduz aquele momento político em ficção.
A ficção científica nos permite discutir temas que já estão no nosso cotidiano, como a crise ambiental, o avanço da tecnologia, os algoritmos e como eles moldam ou oprimem a sociedade, de forma ível. Consumimos muita ficção científica com base nos Estados Unidos, por conta de Hollywood, e acaba absorvendo a visão de mundo deles, com a tecnologia sendo usada como ferramenta de dominação global. Mas quando essas histórias vêm de outras regiões, como o Brasil ou a América Latina, elas ganham outra perspectiva.
Aqui, por exemplo, temos o afrofuturismo como lente: como a população negra brasileira é impactada pela tecnologia? Como os entregadores de aplicativo, majoritariamente negros, são afetados por algoritmos que definem sua rotina e seu rendimento? Minhas histórias tentam trabalhar exatamente com isso. O Último Ancestral, meu primeiro romance, finalista do Jabuti, constrói um mundo em que uma elite tecnológica baniu as religiões de matriz africana, e a população negra foi empurrada para os morros, para as favelas. Parece a nossa realidade, mas é uma ficção científica, uma alegoria para provocar reflexão sobre o presente.
Você está relançando o livro premiado Rastros de Resistência e Literatura Afrofuturista. O que motivou a escolha das novas histórias incluídas nesta edição revisada e ampliada?
Eu adoro esse livro, ele surgiu num momento muito importante da minha trajetória. Pra quem me acompanha, sabe que eu comecei contando histórias de pessoas negras no Twitter, que viralizaram e viraram notícia até em outros países. Dessas histórias nasceu o Rastros de Resistência: História de Luta e Liberdade do Povo Negro, que entrou pro Clube de Leitura da ONU e foi finalista do Prêmio Tamoios.
Relançar esse livro é uma oportunidade importante. Um dos maiores desafios de ser escritor negro no Brasil é a distribuição. Essa nova edição me permite chegar a mais pessoas, com melhor alcance. E como estamos vivendo um novo momento histórico, senti que era hora de incluir duas novas histórias.
A primeira é sobre João Cândido, o Almirante Negro, líder da Revolta da Chibata, que até hoje enfrenta resistência dentro da Marinha. A segunda é sobre o Beijamin, primeiro palhaço negro do Brasil. Uma figura que representa a criatividade, a arte e a resistência em meio à dor. São duas histórias potentes que precisavam estar ali.
Como você vê o impacto de trazer à tona esses personagens históricos negros que foram apagados ou silenciados pelos registros oficiais? Que mudanças espera provocar na percepção do público sobre a história do Brasil?
Esse livro já chegou a algumas escolas. Uma tia minha leu e me disse: “Nunca aprendi isso na escola”. Professores me mandam mensagens dizendo que conseguem prender a atenção dos alunos com essas histórias, que os olhos deles brilham ao conhecer essas figuras. Isso humaniza, amplia o imaginário.
O objetivo é esse: quebrar os estereótipos e mostrar a multiplicidade da experiência negra. Mostrar que existiram — e existem — pessoas negras poderosas, inteligentes, estrategistas, criativas, mas também que sofreram, que resistiram. E isso espalhado por todo o continente. O livro ajuda a popularizar essas imagens, a construir um imaginário mais rico e mais verdadeiro.
O livro faz parte do Clube de Leitura da ONU e está presente em bibliotecas internacionais. Como você enxerga a recepção internacional e nacional dessas histórias de luta e resistência?
Acho que ainda há um caminho a percorrer. Temos nomes brasileiros sendo reconhecidos internacionalmente, claro. Mas ainda existem barreiras de idioma, de o ao mercado, de distribuição. Escritores negros dos Estados Unidos, por exemplo, têm mais oportunidades e visibilidade.
Minha esperança é que as histórias brasileiras ganhem mais espaço na América Latina, na Europa, em todo o mundo. Que o imaginário da pessoa negra periférica brasileira também seja reconhecido globalmente. Fico feliz em ser um pedacinho dessa construção, e estou trabalhando para que minhas próximas obras cheguem ainda mais longe.
O livro dialoga fortemente com a cultura do hip-hop. Ele já foi citado por artistas como Emicida, Coruja BC1 e Planet Hemp. Como essa conexão amplia o alcance e a importância das narrativas negras para as novas gerações?
Isso é essencial. O hip-hop sempre foi expressão artística, cultural e política da população negra. E sempre teve essa conexão natural com outras linguagens, música, poesia, literatura.
No meu caso, cresci ouvindo rap, samba, música periférica. Escrevo ouvindo isso. Então, quando vejo artistas que iro, alguns que viraram amigos, citando minha obra, isso é incrível. Mostra a força do imaginário brasileiro, periférico, que rompe com essas caixinhas de mercado. A arte negra não cabe nessas definições estreitas. É múltipla, expansiva.
O rap também tem esse papel de preservar a memória histórica e fortalecer a luta antirracista. Você acredita que o rap e outras manifestações culturais podem transformar o ensino da história negra no Brasil?
Não só acredito, como acho que isso já está acontecendo. Nos anos 1990, os Racionais tiveram um impacto gigantesco no imaginário do que é ser negro no Brasil. Quantas pessoas conheceram figuras históricas a partir das letras deles? Ou do Emicida, do Rashid, do Djonga, do Coruja…
Esses artistas provocam a busca pelo conhecimento. E meu livro se conecta com isso: ele aprofunda a pesquisa. A pessoa ouve uma música, se interessa por uma figura histórica e encontra essa história no Rastros de Resistência. O rap abre portas e a literatura acompanha, aprofunda.
Você enfrentou desafios ao pesquisar e narrar histórias que muitas vezes foram apagadas ou até mesmo distorcidas pelo colonialismo e o pós-colonialismo?
Sim, enfrentei muitos desafios. Um deles, e eu percebo isso claramente, é que, apesar de ter nascido no Sudeste, no interior de São Paulo, hoje moro em Belém do Pará, e vejo como muitas histórias ainda estão presas ao regionalismo. Tem muita coisa guardada em bibliotecas que só os historiadores daquele lugar conhecem. Por exemplo, só consegui ar a história do negro Cosme, um líder quilombola do Maranhão, graças a uma historiadora chamada, se não me engano, Mundinha Araújo. Conheci ela quando fui ao Maranhão. É uma senhora ancestral, muito poderosa, que me ensinou também sobre o Nego Rosa, uma figura que praticamente não se encontra na internet.
Então, existem muitos documentos, histórias regionais, lendas e saberes que ainda estão na oralidade, nas expressões culturais, nas manifestações musicais… E o Brasil precisaria de um investimento muito sério para visitar todos esses lugares e reunir essas peças que estão espalhadas. É isso: temos uma cultura riquíssima, mas precisamos vasculhar mesmo para descobrir tudo o que ainda está perdido por aí.
Você costuma afirmar que precisamos de mais histórias de sucesso e felicidade negras, não apenas narrativas de dor. Como isso se reflete no seu processo criativo e na recepção do seu público?
Eu falo muito sobre isso, especialmente quando se trata da televisão, das novelas brasileiras… A crítica que sempre aparece é que as pessoas negras costumam estar em papéis subalternos, com pouca complexidade ou poder. Precisamos de narrativas de pessoas negras que venceram, mesmo na dor.
O meu livro Rastros de Resistência traz muitas histórias de líderes quilombolas que, sim, não sobreviveram, como o próprio Benkos Biohó, o maior líder negro revolucionário da Colômbia. Ele não sobreviveu, mas fundou o maior quilombo da história do país, e esse quilombo deu origem ao primeiro povo negro livre das Américas, em 1620. Isso é uma história de sucesso. É poderosa.
Acredito que precisamos de mais histórias que mostrem nossa subjetividade, nossa profundidade, de forma valorosa. Não se trata só de ocupar um papel de destaque heroico, mas de mostrar que nossas vidas são complexas, múltiplas, magníficas. As grandes tragédias gregas inspiraram gerações, então por que não podemos ter histórias negras que também inspirem, seja pela dor, seja pelo sucesso? E, principalmente, que não nos deixem presos a papéis sem subjetividade, como se fôssemos apenas vítimas ivas de um ado de escravidão.
Que mensagem você deixa para os pequenos que querem seguir no mundo da arte, da cultura?
A mensagem é: acredite na sua história. Naquela que você escreve com a caneta, com o teclado, com o celular… e também na que você escreve ao tentar viver do ofício da escrita. Ser escritor no Brasil, especialmente se você é uma pessoa negra, periférica, mulher ou da comunidade LGBTQIA+, é escrever uma história inédita. Só o fato de você existir nesse campo já é algo poderoso. Então acredite nisso.
Para ouvir e assistir
O jornal Conexão BdF vai ao ar em duas edições, de segunda a sexta-feira, uma às 9h e outra às 17h, na Rádio Brasil de Fato, 98.9 FM na Grande São Paulo, com transmissão simultânea também pelo YouTube do Brasil de Fato.