A promotora de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia Lívia Sant'Anna Vaz tem suscitado debates relevantes em defesa dos direitos humanos a partir de seu engajamento político e institucional. Autora do livro Cotas Raciais, ela se articula com movimentos sociais e em ambientes acadêmicos, jurídicos e culturais para refletir sobre a política de promoção da igualdade racial do Estado Brasileiro.
A organização não-governamental Educafro, voltada para o apoio educacional da comunidade afrobrasileira a incluiu numa lista de 10 pessoas negras como sugestão para assumir uma das vagas do Supremo Tribunal Federal (STF) abertas pelas saídas do ministro Ricardo Lewandowski e da ministra Rosa Weber, prevista para outubro.
A organização Mais Influente Afrodescendente (MIPAD, na sigla em inglês) também defendeu, através de carta aberta ao presidente Lula, a indicação da baiana ao STF e está recolhendo s de adesão online para o documento.
Nascida em Salvador, fez mestrado em Direito Público pela UFBA e doutorado em Ciências Jurídico-Políticas em Lisboa. Especialista em estudos afro-latino-americanos e caribenhos, coordena um grupo de combate ao racismo do Conselho Nacional do Ministério Pùblico, onde atua desde 2004. Autora do livro A Justiça é uma mulher negra, foi eleita no ano ado uma das 100 pessoas de descendência africana mais influentes do mundo.
Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato – Como é, para a senhora, conviver com a herança do patriarcado, do sexismo e do racismo nos espaços de poder institucional?
Lívia Sant'Anna Vaz – Recordando os ensinamentos de [Franz] Fanon, eu diria que, na verdade, trata-se de um não-lugar. No Brasil, mulheres negras não são apenas sub-representadas nos espaços de poder institucional; elas são quase ausentes. Essa é uma realidade tanto nas instituições públicas quanto nas privadas. E a sociedade brasileira simplesmente naturaliza essas ausências, como consequência da perpetuação do racismo patriarcal. É natural não ter uma mulher negra como gestora de uma grande empresa ou ocupando uma cadeira no Congresso Nacional; é natural que o Supremo Tribunal Federal nunca tenha tido uma ministra negra, mesmo nos seus mais de 130 anos de instituição.
Um levantamento do Conselho Nacional de Justiça, na Pesquisa sobre negros e negras no Poder Judiciário, publicada em 2021, revela que pessoas negras são apenas 12,8% da magistratura brasileira. Numa perspectiva interseccional, o resultado é ainda mais impactante: mulheres negras são apenas 5% das magistradas do nosso país, mesmo sendo o nosso maior segmento social, representando 28% da sociedade brasileira. Nesse contexto, ser uma mulher negra ocupando o cargo de promotora de Justiça é ser a exceção que confirma a regra. É também vivenciar uma solidão institucional que pode ser adoecedora.
Livia Vaz define as cotas raciais como "um pequeno, porém firme, o rumo à justiça racial e à democracia no Brasil" / Thaylla de Paula
Ainda somos negras únicas em muitos espaços e essa condição, além de provocar violências institucionais, nos impõe severos obstáculos na luta contra o racismo, o sexismo e todas as formas de opressão. Mas, ao mesmo tempo, significa adotar uma postura contra-hegemônica de construção de uma justiça pluriversal; significa assumir uma missão ancestral de seguir abrindo caminhos para as que virão, honrando os os dados por aquelas que vieram antes.
O seu livro Cotas Raciais causou grande repercussão nos meios acadêmico e político. Que importância tem esse debate após dez anos da Lei 12.711/2012, que trata da matéria?
Como eu afirmo no livro, as cotas raciais – que são uma modalidade de ação afirmativa – representam um pequeno, porém firme, o rumo à justiça racial e à democracia no Brasil. Isso porque, embora sejam a política pública de reparação mais bem sucedida da nossa história – a primeira resposta efetiva do Estado brasileiro aos quase 400 anos de escravização de pessoas negras – ainda está muito aquém do que deve ser feito para promover igualdade racial. Nós temos cotas raciais para o ao ensino superior e a concursos públicos, mas não foram apenas esses os espaços e direitos que nos foram negados historicamente. Todos os nossos direitos foram negados, nossa própria humanidade foi negada. Por isso, precisamos aprofundar o debate em todos das ações afirmativas – garantindo mecanismos de controle da eficácia de tais políticas públicas já implementadas –, mas também é necessário ampliar o leque de medidas voltadas para a garantia de direitos e oportunidades para a população negra.
Que avanços e limites a senhora identifica na política de promoção da igualdade racial na Bahia, um estado com grande contingente de população negra e indígena?
No que diz respeito às políticas de igualdade racial, a Bahia possui um Estatuto da Igualdade Racial e de Combate à Intolerância Religiosa, o que pode ser considerado um importante avanço em termos legislativos. O Estatuto, instituído pela Lei nº 13.182/2014, tem o objetivo de garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, defesa de direitos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e demais formas de intolerância racial e religiosa. Inspirado no Estatuto Nacional (Lei nº 12.288/2010) em diversos aspectos – a exemplo das diretrizes sobre direito à saúde, à educação, ao esporte, ao lazer, à moradia, ao trabalho e à liberdade de crença, além da concepção de um sistema próprio voltado para a promoção da igualdade racial –, o Estatuto baiano ajusta as políticas nacionais às demandas da população negra do estado da Bahia. A lei baiana investe também na promoção da igualdade, merecendo destaque especial a instituição de cotas raciais, com reserva para a população negra de, no mínimo, 30% das vagas oferecidas nos concursos públicos e processos seletivos estaduais para provimento de pessoal no âmbito da istração pública direta e indireta.
Apesar dos avanços legislativos, sabemos que a Bahia – cuja capital, Salvador, é considerada a cidade mais negra fora da África – está entre os entes federados que apresentam mais elevado percentual de indivíduos negros no país. Nessa perspectiva, o percentual de 30% estabelecido pelo Estatuto é ainda desproporcional à representação negra na sociedade baiana.
Outra questão importante diz respeito à aplicação do estatuto aos concursos estaduais, notando-se que, na prática, muitos municípios baianos não possuem cotas raciais em seus concursos públicos. Outro aspecto preocupante diz respeito ao monitoramento das cotas raciais. Apenas recentemente o estado da Bahia ou a implementar comissões de heteroidentificação nos seus concursos para evitar as fraudes às cotas raciais, o que permitiu que muitas pessoas socialmente brancas ingressassem nas vagas reservadas, provocando um grave desvio de finalidade da política pública e um atraso significativo no efetivo incremento da presença negra nesses espaços de poder institucional. Problema semelhante ocorre nas universidades estaduais – inclusive a UNEB, uma das pioneiras na instituição de cotas raciais para o ao ensino superior no Brasil –, pois, embora já tenham criado comissões de heteroidentificação nos seus concursos com cotas raciais, ainda não o fizeram no que diz respeito ao ingresso dos estudantes cotistas, o que tem estimulado a fraude às cotas, sobretudo em cursos de grande prestígio, como Direito e Medicina.
No que se refere aos povos indígenas, as políticas públicas de igualdade étnico-racial ainda são muito tímidas no estado da Bahia.
Desse modo, em linhas gerais, podemos dizer que ainda há um longo caminho a ser percorrido em busca de igualdade étnico-racial na Bahia, especialmente quando se leva em consideração a sub-representação de pessoas negras e indígenas nos mais diversos espaços de poder institucional. Nunca tivemos, por exemplo, um/a prefeito/a negro/a eleito/a em Salvador. Atualmente, temos apenas a segunda mulher negra ocupando uma cadeira na Assembleia Legislativa do Estado da Bahia. Essa realidade não é muito diferente no sistema de justiça que também possui um perfil majoritariamente branco.