O interesse de clínicas privadas em comprar 5 milhões de doses da vacina indiana Covaxin para comercialização no Brasil, trouxe à tona um debate público sobre as condições de o à imunização no segundo país mais afetado pela pandemia do novo coronavírus.
As negociações com o laboratório Bharat Biotech foram anunciadas no domingo (3) pela Associação Brasileira das Clínicas de Vacinas (ABCVAC). No dia seguinte, os membros da diretoria da entidade embarcaram para a cidade de Hyderabad, capital do estado de Telangana, no sul da Índia, para conhecer a fábrica.
A organização do setor privado alega que o objetivo é garantir a ampliação da cobertura vacinal contra o coronavírus de forma complementar ao Sistema Único de Saúde (SUS). Assim como qualquer outro imunizante, a Covaxin depende de autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para ser aplicada no Brasil.
No entanto, a movimentação das clínicas particulares tem sido criticada por especialistas da área da saúde pública. Isso porque, em meio à disputas políticas ainda não houve o início da vacinação em território nacional, a oferta pelo setor privado ocasionaria um o desigual à imunização.
"Não podemos dividir a população entre aqueles que podem pagar ou não para ter o à vacina”, defende Túlio Franco, doutor em Saúde Coletiva pela Unicamp.
“Nós aprendemos uma coisa com o vírus: ninguém se salva sozinho. Não adianta um grupo de pessoas se vacinar e dizer: 'Estou livre, estou salvo'. Porque não está. Precisamos atingir a imunidade de rebanho. Precisamos de toda a população vacinada para neutralizar o vírus. Se isso não acontecer, ele muda a estrutura e terá outra pandemia", explica.
Segundo o especialista, o Programa Nacional de Imunizações (PNI) brasileiro é uma referência mundial e o único sistema com condição de garantir a proteção de toda a população contra o coronavírus, como preconiza a Organização Mundial da Saúde (OMS) para o próprio controle da pandemia.
“O que defendemos é que a vacina seja oferecida exclusivamente pelo SUS, centralizada no PNI, com suas versões nos estados e municípios, com oferta a todas as pessoas conforme o cronograma de prioridade já definido", pontua.
Franco considera que a corrida do setor privado "tumultua e desorganiza" o processo de vacinação da população brasileira. "Se cria um critério de que terão o às vacinas as pessoas com dinheiro. As sem dinheiro, não se sabe quando.”
Na avaliação do especialista, caso a vacinação pelo setor privado seja autorizada pelo governo após a liberação da Anvisa, a ação pode ser considerada ilegal por infringir a Lei 8080 da Constituição Federal, que determina os princípios da universalidade e equidade no o aos serviços de saúde.
"A interferência do setor privado para vacinar as pessoas que têm condições de pagar vai desorganizar essa ordem e rompe com a ética de que o o aos recursos de saúde é para todas as pessoas de forma equitativa. Quem tem condições de defender e aplicar essa ética é o sistema estatal”, endossa o professor do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal Fluminense.
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O infectologista Helio Bacha, consultor da Sociedade Brasileira de Infectologia, concorda que possibilitar a vacinação pela rede privada de uma parcela privilegiada da população não é uma forma eficaz de combate à epidemia.
“Não se pode furar a fila. Eles podem comprar, mas não vão poder aplicar a vacina. As clínicas privadas tradicionalmente seguem a orientação geral do programa nacional de vacinação. Não há porque fazer para rico um tipo de vacinação e pra massa da população outra. Mesmo porque não se combate a pandemia vacinando rico”, critica.
Prioridade invertida?
Em nota publicada desta segunda (4), o Ministério da Saúde afirmou que a vacinação no país será feita pela rede pública e que o setor privado também deverá seguir a ordem de vacinação de grupos prioritários prevista no PNI.
A aplicação das vacinas indianas pelas clínicas particulares, devem chegar em meados de março de acordo com previsão da ABCVAC, a depender dos trâmites de aprovação da Anvisa.
Alisson Sampaio, especialista em Medicina da Família e Comunidade, critica a descoordenação entre governo federal e as esferas estaduais e municipais no combate à covid-19 e alerta que, caso exceções sejam feitas para clínicas particulares na vacinação, “há um sério risco de que o fator econômico se sobreponha ao fator epidemiológico”.
“Pessoas jovens com nenhuma comorbidade, que tenham condição de pagar a vacina no setor privado, podem furar a fila e ar na frente das pessoas que mais precisam. Precisamos garantir que o SUS vacine todo mundo e que não haja concorrência entre o público e o privado”, afirma.
Segundo reportagem da Folha de S. Paulo, a Associação planeja oferecer a vacina indiana a empregados de setores econômicos que não estão hoje nos grupos prioritários previstos pelo PNI para que possam voltar ao trabalho.
Até mesmo a Confederação Nacional da Indústria (CNI) estaria avaliando arcar com custos de parte da campanha de vacinação para uma parcela de trabalhadores entre 20 e 50 anos.
Frontalmente contrário à comercialização do imunizante, Túlio Franco, que é também coordenador da Rede Unida e membro da Frente pela Vida, destaca a importância do estabelecimento de regras e normas a exemplo da determinação do Ministério da Saúde.
“A ideia de vacinar primeiro os grupos mais vulneráveis é uma regra que não pode ser quebrada em nenhuma hipótese. Temos que ter claro qual a ética para saúde que defendemos nesse momento de situação tão grave para garantir uma situação que proteja a população brasileira."Só o SUS pode fazer isso”, ressalta Franco.
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Já para Sampaio, a divisão da vacinação entre o setor público e privado pode trazer danos ao monitoramento do combate à pandemia.
“A descoordenação faz com que não haja vigilância epidemiológica desses casos. Na hora de vacinar uma pessoa no setor privado, qual o controle que essa clínica particular vai ter em relação aos efeitos colaterais da vacina? Vai ter um acompanhamento de longo prazo dessa pessoa? Vai haver notificação">Rede Nacional de Médicos e Médicas Populares.
De acordo com a pasta da Saúde, a aplicação das doses nas clínicas privadas deverá ser registrada na Rede Nacional de Dados de Saúde e na caderneta digital de vacinação para monitoramento.
Eficácia a ser analisada
O uso emergencial da Covaxin na Índia foi aprovado no último sábado (2) em meio a questionamentos sobre sua eficácia. Segundo o laboratório Bharat Biotech, resultados preliminares apontam que o imunizante produz um anticorpo neutralizante, com resultados eficazes em todos os grupos de controle. Até o momento não há registro de reações adversas.
A liberação emergencial ocorreu justamente na terceira fase dos testes, etapa de verificação da eficácia da substância.
Em nota pública, o presidente da ABCVAC, Geraldo Barbosa, declara que a expectativa é a de que os resultados finais saiam ainda em janeiro. Sendo assim, o laboratório deve entrar com o pedido de registro definitivo na Anvisa no mês seguinte.
Perspectivas
Após uma série de idas e vindas, o governo federal informou que quer começar a campanha de vacinação em 20 de janeiro com a imunização de profissionais de saúde e idosos. Em um cenário otimista, os grupos prioritários seriam vacinados no primeiro semestre deste ano e o restante dos brasileiros nos doze meses seguintes.
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Pensando a longo prazo, diante da imprevisibilidade do coronavírus, Túlio Franco acredita que a distribuição da vacina deve permanecer centralizada nas mãos do SUS, ainda que haja estabilidade ampla da epidemia.
“O vírus é muito novo, ainda há muitas questões a serem desvendadas. Uma delas é qual o tempo que as pessoas ficarão imunes. Como o coronavírus tem mutação, é provável que vacina tenha que ser registrada em certos períodos para a continuidade da imunização. É tão complexo o processo que só o sistema estatal organizado, dentro de uma pactuação nacional, consegue fazer”, conclui.