Embora o número de famintos cresça pelo quarto ano seguido, o avanço acelerado da obesidade tornou-se a preocupação número 1 da segurança alimentar no mundo. A constatação é do diretor-geral da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), o agrônomo brasileiro José Graziano, que lança o novo relatório anual sobre o tema na segunda-feira (15) e conclui sete anos e meio à frente da entidade, vinculada à Organização das Nações Unidas (ONU).
Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, Graziano alerta que a perda de poder aquisitivo tem levado populações vulneráveis a priorizar alimentos como farinha e arroz, ricos em carboidratos — e, portanto, em calorias — e pobres em proteínas e micronutrientes.
Os dois mandatos do brasileiro tiveram como prioridade a ênfase na promoção do o aos alimentos, bem como a busca por garantir que estes sejam saudáveis e cultivados de modo sustentável. O Fome Zero, que tirou o Brasil do Mapa da Fome e melhorou a condição de vida de milhões de famílias, contribuiu para esse objetivo. Graziano – cuja participação nessa iniciativa o credenciou para o posto na FAO – lamenta que o país venha deixando de lado o “afã cooperador”, especialmente no que diz respeito à África.
O entrevistado, que a o bastão em 1º de agosto ao agrônomo Qu Dongyu, ressalta a importância de um profissional oriundo da Ásia – em particular da China – assumir pela primeira vez a organização. Na avaliação do brasileiro, o sucessor é qualificado para enfrentar o cenário de crise nas relações multilaterais, mudanças climáticas e migrações.
Confira os melhores momentos da conversa:
Brasil de Fato: Quais as principais realizações do período em que esteve à frente da FAO e quais os desafios prioritários para cumprirmos os objetivos de desenvolvimento sustentável ligados a segurança alimentar e nutricional para 2030?
José Graziano: Quando tomei posse como diretor, a FAO era uma instituição basicamente dedicada a impulsionar a agricultura, dentro de uma ideia que é parte do paradigma da “revolução verde”, de aumentar a produção de alimentos como forma de acabar com a fome. A nossa experiência no Brasil – país que é um grande produtor e exportador de alimentos e que tinha muita fome até 2010 – mostrava a necessidade de se criar políticas de o ao alimento. Ter formas, como transferência de renda, Bolsa Família, inclusive para aqueles que não podem comprar. Foi isso que eu fiz na FAO.
Nós deixamos de buscar o aumento da produção a qualquer custo e amos a priorizar produtos mais saudáveis, a levar em conta o impacto sobre o meio ambiente e outras coisas que hoje são óbvias, mas que não eram em 2012.
Um grande desafio que o meu sucessor vai ter é continuar nessa prioridade sem agravar todo o impacto, que nós estamos vendo, das mudanças climáticas sobre a produção agrícola. Hoje as secas destroem grande parte da produção. Quando não é seca é inundação, tempestade, furacão, etc.
Também há um desafio interno, de recompor o orçamento da FAO, que nos últimos dez anos tem crescimento nominal zero, e há uma grande crise do multilateralismo. Grandes países, grandes doadores estão se retirando de acordos importantes – o Acordo de Paris, vários acordos multilaterais como o de migração… Então, preservar o multilateralismo, preservar as instituições criadas para o Sistema Nações Unidas é um desafio dos maiores.
Em 2017, o número de pessoas subalimentadas estava estimado em 821 milhões, e em 2016 o de adultos obesos ou de 670 milhões. Em 2018, esses números voltaram a crescer? O Brasil retornou ao Mapa da Fome, como se temia?
Eu não posso antecipar os números que vão ser lançados segunda-feira [disponível em inglês neste link]. O que posso te dizer é que a fome volta a crescer, [mas] muito pouco. É um aumento pequeno em termos globais no mundo. Uma das áreas mais afetadas por esse crescimento é a América Latina, devido à crise econômica que afeta a região. Os preços dos produtos agrícolas, os preços das commodities têm caído muito, e isso afeta os países que as exportam, entre os quais o Brasil.
Mas a grande preocupação não tem sido o crescimento da fome, e sim da obesidade. Eu posso dizer que ela já é o problema mais importante na região. O número de obesos é maior do que o número de pessoas ando fome não só na América Latina e no Brasil, mas também em outras regiões do mundo. Porque as pessoas estão comendo mal.
A crise econômica está reduzindo o poder aquisitivo, então as pessoas estão deixando de comprar produtos que são mais caros – como verduras, frutas, legumes – e estão comendo produtos mais baratos, como as farinhas de trigo, de milho, de mandioca, arroz… Muita caloria e pouca proteína, e também muita deficiência de micronutrientes, como zinco, como cálcio, vitaminas A e B.
Tem aumentado muito o problema de anemia nas mulheres e crianças. Em resumo, o Mapa da Fome continua praticamente inalterado, com pequenas pioras em algumas regiões, mas o mapa da má nutrição tem piorado muito. Cada vez mais, a preocupação vai para o lado de comer mal, inclusive no Brasil.
Enquanto a FAO replicou mundo afora programas como o PAA [Programa de Aquisição de Alimentos], o PNAE [Programa Nacional de Alimentação Escolar] e o Pronaf [Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar], criados ou fortalecidos nos governos Lula (PT) e Dilma Rousseff (PT), o Brasil enfraqueceu-os (em alguns casos, boicotou) nos últimos anos. Outros países assumiram o lugar de vitrine de experiências bem-sucedidas na área?
Eu trouxe para a FAO muitos dos programas do Fome Zero, com muito sucesso. O de maior sucesso foi o de merenda escolar com compra da produção local de agricultura familiar. Essa possibilidade de você comprar produtos frescos no entorno escolar – leite, ovos, frutas – não só barateia e torna mais nutritiva a merenda como também injeta dinheiro naquele local, promovendo uma espécie de desenvolvimento local, um círculo virtuoso de produção e consumo.
Também trouxemos o programa 1 Milhão de Cisternas, que foi implantado com êxito no Nordeste do Brasil: coletar água da chuva e armazenar do lado da casa para ter água potável durante todo o ano nas regiões áridas. Nós o estamos levando para o Sahel, que é a região semiárida da África abaixo da região desértica.
Muitas tecnologias desenvolvidas também pela Embrapa [Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária]… E aquicultura, levando a experiência da tilápia melhorada não só para a Ásia como para a África.
O Brasil perdeu esse dinamismo, não tem o mesmo afã cooperador que tinha no início dos anos 2000. Diminuiu muito a vontade de cooperar, principalmente com os países da África. Há exemplos de outros países que estamos levando. Temos no Sahel um programa contra a desertificação que consiste em basicamente coletar localmente sementes dessas árvores que sobrevivem nas condições mais adversas, fazer viveiros de mudas e plantar um tipo de um cordão – nós chamamos de Green Wall, muro verde – para evitar o avanço do deserto.
Até que ponto um organismo internacional pode ou deve manter-se “neutro” diante de políticas regressivas? E como enfrentar problemas cada vez mais globais e urgentes em um cenário de desinformação deliberada e enfraquecimento das instâncias multilaterais?
O primeiro ponto é aceitar que alguns problemas não podem ser resolvidos no nível dos países. Se não houver instituições globais que ajudem, não serão resolvidos. O exemplo mais claro e objetivo é o da mudança climática, do aquecimento global. Se todo o mundo não cooperar, não vamos resolver — e, como sempre se diz, nós não temos um plano B, um “planeta B” para migrar.
Outros problemas que não vão ser resolvidos no nível de cada país são o das migrações e o da obesidade. Convencer os países é difícil. Todo mundo acha que “posso fazer o meu, resolvendo o meu caso está bom”.
Também nas relações bilaterais os países são muito limitados. Em geral, têm problema com os seus vizinhos. Então, é difícil cooperar. O vizinho está sempre desconfiado de que você quer alguma coisa. Caso típico, Brasil-Argentina. Quando entra uma terceira parte, em uma organização internacional que tem a obrigação de ser neutra, facilita. É o que chamamos, por exemplo, de cooperação Sul-Sul.
Como reduzir o consumo de açúcar, gordura, carne e ultraprocessados, e consolidar novos hábitos alimentares, diante de resistências culturais e lobbies tão intensos nos parlamentos e governos?
A promoção de uma alimentação de melhor qualidade a por alertar o consumidor sobre os produtos que têm alto teor de açúcar, de sal, de gorduras saturadas e aditivos químicos — em geral, o que se chama produtos ultraprocessados. A FAO está promovendo a ideia de colocar uma etiqueta frontal de alerta neles. Isso tem tido uma oposição de certos ramos industriais, mas ela tem sido gradativamente vencida.
O Brasil fez, recentemente, um acordo com o setor industrial para reduzir o nível de sal. Foi considerado um acordo não suficiente, mas um importante primeiro o. Falta fazer com o açúcar. Grande parte do problema da obesidade, principalmente entre as crianças, deve-se ao consumo dessas sodas, dessas gaseosas [refrigerantes e afins], que têm um nível de açúcar que chega a 40%. Já implantamos, por exemplo, no México, uma taxa maior para as bebidas não alcoólicas com mais açúcar. É insuficiente, mas é o caminho para o futuro. Taxar os produtos que têm um teor alto de açúcar, sal e óleos saturados.
A China tem a maior população, responde como maior emissora de gás carbônico, é a maior produtora e consumidora de alimentos e emerge como a próxima potência mundial. O que significa ter um chinês à frente da FAO pela primeira vez?
O Dr. Qu Dongyu, que começa o mandato no dia 1º de agosto, é uma pessoa altamente qualificada. É PhD em Wageningen, a universidade agrícola número 1 do mundo, vice-ministro de Agricultura da China, tem uma grande experiência istrativa. Pode trazer um grande dinamismo em áreas como a da cooperação Sul-Sul, em que a China é líder, mas também em programas de combate à pobreza e à fome, em que o país também é um grande exemplo.
Vejo como muito positiva a chegada de um chinês à frente da FAO, até porque hoje, na organização, a gente sempre faz os números com a China e sem ela. O peso da China é de tal ordem, no combate à fome, por exemplo, que se você incluir a China os números caem, e se excluir, crescem. É um momento importante para um país da Ásia, especialmente um país que tem a liderança como tem a China, estar à frente da organização. Acho que ele será bem-sucedido.